Senhores do samba, do carnaval
A olho nu, as vielas do Morro da Mangueira apresentam-se sinuosas, íngremes, venenosas para caminhadas ingênuas. Bobagem; quem é bamba conhece os caminhos. Como Dona Jovem, a baiana mais antiga da Estação Primeira – até 2015. Para o Carnaval de 2016, a diretoria pediu que ela, nascida Jovelina Silva dos Reis há 75 anos, deixasse a ala. O peso da fantasia, especularam os cartolas, seria demais para a idade dela.
Dona Jovem entrou, assim, para o time onde está, há alguns anos, Maria Helena, uma das maiores porta-bandeiras de nossa grande festa em todos os tempos. De 1982 a 2005, ela brilhou com o pavilhão verde e branco da Imperatriz Leopoldinense, conquistando cinco títulos e inúmeros prêmios individuais. Aos 60 anos, acabou descartada pela falta de notas 10, que muitos atribuíram à idade.
Além da baiana mangueirense e da eterna porta-bandeira, o Carnaval enfileira exemplos para provar que, no tratamento a seus veteranos, é brasileiro da maneira mais triste. A sensibilidade para produzir arte tão deslumbrante não se repete no necessário cuidado com os idosos que ajudaram a construir as escolas de samba. Muitos são condenados ao desterro de perder seu papel no espetáculo – isso após uma vida inteira dedicada à missão de materializar a alegria que encanta o mundo inteiro.
Aos bambas longevos, resta encarar o duelo contra a intolerância de quem fareja na idade uma limitação. Maria Helena frequenta quadras de várias escolas e ensaios na avenida com a mesma elegância dos tempos em que rodopiava pela pista, sob a guarda do mestre-sala Chiquinho, seu filho mais velho. O público do Carnaval sempre a reconhece e capricha na reverência, batendo palmas com vontade. Ao exaltar uma eterna rainha da festa, cumpre o papel que os cartolas do samba negligenciaram. (Desde que dispensou Maria Helena, a Imperatriz conquistou as sonhadas notas máximas somente no Carnaval de 2014.)
Ficou exilado na parede da memória o papel de protagonista que a Velha Guarda desempenhou tradicionalmente nos desfiles, ao longo de décadas. Nos Carnavais do passado, os senhores passavam elegantes, de chapéu panamá e terno de linho, na comissão de frente, apresentando as escolas – afinal, quem faria aquilo melhor, senão os mestres? Tal dignidade, pena, perdeu-se na poeira dos tempos.
Mas a luta continua. “Não vou botar a baiana, mas vou brincar do mesmo jeito”, avisou Dona Jovem (para confirmar o apelido) em janeiro à repórter Dandara Tinoco. Frequentou os ensaios, na quadra e na avenida que margeia a favela, descendo a ladeira íngreme onde mora, até o asfalto. Quando o piso irregular ameaçava traí-la, tirava as sandálias de salto médio, e seguia em frente, rumo a seu destino. Por mais de meio século, a ala das baianas foi a casa carnavalesca de Dona Jovem. Deixou de ser justamente no ano de mais um título para sua Mangueira. Como apoio da ala, viu as antigas parceiras reinarem vestidas de dourado, para representar Santa Bárbara, que no sincretismo religioso é Iansã ou Oyá – justamente o orixá de Dona Jovem.
Resta o protocolo dos bambas, que ensina a vencer os obstáculos, como atesta a alegria destemida da senhora mangueirense. “Quando morrer, eu descanso. Enquanto isso, quero viver cansada”.
Vida longa, Dona Jovem, Maria Helena, senhoras e senhores do samba. Amém.