O cronista digital

logo mag seguros Por Marceu Vieira
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ícone de calendário indicando a data da publicação​ Criado em 09/05/2016 | Atualizado em 22/12/2022

No dia 28 de agosto de 2015, véspera do aniversário de 16 anos da minha filha caçula, a quatro meses e 48 horas de eu completar 30 verões de carteira assinada, experimentei uma situação semelhante, talvez, à vivida por Pedro Álvares Cabral ao deparar com o Brasil.

Ao desembarcar naquela vastidão, o navegante português não percebeu a imensidão que encontrara e pensou, primeiro, tratar-se de uma ilha. Só depois de algum tempo compreendeu a dimensão do que acontecera em seu descaminho rumo às Índias Orientais.

Pois minha vida começou a mudar de forma imensa naquele 28 de agosto, embora eu não soubesse disso. Ou pelo menos ainda não suspeitasse da dimensão da mudança.

Eu havia acordado cedo pra trabalhar, como sempre fazia. A grande crise brasileira, somada à crise particular da imprensa, com as pressões da internet sobre o mercado de papel, contaminava de incertezas as redações de jornal. Inclusive aquela onde eu trabalhava.

Mas nada me permitia imaginar que seria meu último dia no grande grupo de comunicação onde eu havia chegado aos 30 e poucos anos de idade, no auge da minha trajetória profissional.

A última sexta

Era sexta-feira. Minha última sexta como trabalhador formal nos quase oito meses que se passariam de lá pra cá, período em que todos os dias, pra mim, puderam ser uma espécie de véspera de sábado, sempre que assim eu quis. Em português capitalista, fui demitido.

Eu havia trabalhado para o mesmo patrão os últimos 17 anos e meio da minha vida. Mais da metade, portanto, de toda a minha carreira – primeiro, na revista do grupo, entre 1998 e 2002, depois, até aquele dia, no maior de seus jornais, jornalão onde cumprira as funções de editor-adjunto do principal colunista da casa e, em seguida, de editor da seção de Esportes, posto no qual comandei e planejei as coberturas da Copa das Confederações, em 2013, e do Mundial da Fifa de 2014, no Brasil.

Ou seja, eu era uma peça de certa forma importante naquela engrenagem. Ou, o que é mais certo, imaginava ser. Porque as importâncias somos nós que nos damos, ou as supomos, e elas, as importâncias, se esfarelam nos breves segundos de um comunicado de demissão.

Fui pra casa sem decifrar direito o que acontecia no meu mercado de trabalho, na minha própria rotina, na vida que viria no dia seguinte e no dia seguinte do dia seguinte e no seguinte do seguinte do seguinte.

Até ali, desde os 20 anos de idade, eu não havia precisado me preocupar com planos de saúde, por exemplo. Nem com pagamentos de Previdência Social ou privada. Muito menos com emissão de notas fiscais ou mesmo com o café que eu buscava na máquina da redação pra ajudar, quem sabe, na inspiração de um texto.

Aliás, não precisava me preocupar sequer com o café às vezes derrubado na mesa, acidente comum numa redação.

Porque havia quem pagasse o plano de saúde e pagasse a previdência privada e pagasse o INSS, e notas fiscais não eram necessárias – e havia até quem limpasse minha mesa, caso eu derrubasse o café. Bastava ligar pra um ramal que logo, bem logo, estava ali, diante de mim, uma senhorinha ou um senhorzinho dos serviços gerais pra me socorrer.

O blog

A chamada “reinvenção profissional” depois de 30 anos de uma carreira bem-sucedida e até premiada não estava na minha agenda, enfim. Mas a onda grande veio, e a onda grande me engoliu, e eu precisei lidar com ela e buscar nos dicionários da crise o significado deste verbete que resisto a usar, por não gostar dele, mas anda tão em moda – “reinvenção”.

No início, apesar da crise, cheguei a acreditar na possibilidade de um convite pra um novo emprego formal. Mas o tempo me faria ver que a Ilha de Vera Cruz não era ilha. Sequer era Terra de Santa Cruz. A mudança tinha o tamanho do Brasil.

Quando entrei no quarto mês da nova realidade, e nenhum convite pra trabalho formal surgiu, comecei a fazer por mim o que antes havia quem fizesse. Contratei plano de saúde pra mim e meus filhos, aderi a uma previdência privada, fui me informar sobre pagamentos de INSS, abri um MEI, sigla de Microempreendedor Individual, agora já convertido no CNPJ de microempresa, e, o mais importante, embora ali eu não soubesse, criei um blog de crônicas – o marceuvieira.wordpress.com.

Em três meses, esse blog caminha pra atingir 70 mil visualizações sem qualquer impulso que não seja o meu próprio de compartilhar as crônicas nas redes sociais e de contar também com o compartilhamento de quem vai lendo e gostando. É um Maracanã lotado.

Diretamente, o blog não me rende um centavo. Mas me devolveu uma visibilidade que eu já não tinha nem mesmo no meu emprego formal. Por causa do blog, já consegui trabalhos pros quais antes eu não era sequer cogitado.

Não é um caminho simples. Há meses em que não entra um real na conta bancária. Só sai – e, nessas horas, o jeito reduzir as despesas ao máximo e recorrer às reservas. Mas, sim, é possível viver sem patrão e sem carteira assinada e sem ter quem mande em você e pague seu plano de saúde e seu INSS e sua previdência privada e limpe o café derramado na sua mesa.

Às vezes, bate um desânimo. Mas, até nesses momentos, a gente aprende alguma coisa.

O ex-empregado de grande grupo privado de comunicação, convertido em cronista digital, segue aprendendo.